segunda-feira, 30 de novembro de 2009

VIDA NOTURNA

Você acorda as 6 da tarde com aquele gosto de ferrugem na boca e com a impressão de que seu travesseiro não foi feito com penas de ganso, mas sim com cinzas de cigarro. Olha pro lado e tenta lembrar o nome da mulher que dorme ao seu lado. Levanta e começa a lembrar da noite passada. O nome se apagou com solvente na memória e ela dorme feito um defunto na sua cama. Imóvel! Será que está respirando? Chega bem perto dela e a surpresa é grande ao ver seu rosto, não parece a mesma pessoa com quem deitou quando o dia raiava. Verifica que há uma respiração de conhaque em suas narinas...Ela está viva! Prepara um sanduíche, dá uma mordida, pega o pacote que tinha deixado em cima da mesa antes de sair ontem a noite, abre a encomenda com o cd cheirando a novo, coloca no aparelho para tocar e se encosta no sofá. Pensa no que vai dizer para aquela mulher quando despertar. A música maravilhosa se mistura com seus pensamentos, você levanta bruscamente e escreve um bilhete para a tal mulher - Tive que sair por motivo de emergência, pode trancar a porta e colocar a chave dentro da caixa postal 203, que fica logo após a entrada do edifício.
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Tranca a sala onde guarda os livros e discos, com passos de pluma sai sem fazer barulho. Pensa que se roubar o resto da casa não tem problema. Vai direto pro primeiro botequim que fica a duas quadras do apartamento, pede um café bem forte e logo mais uma cerveja. Depois de três goles o grau etílico das 5 da manhã parece retornar a sua cabeça e as pessoas parecem ter um balanço todo especial. Bate um papo com o Juvenal (dono do boteco) e conta a respeito da noite passada.
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Depois de fazer um tempo, vai ao encontro do parceiro que havia lhe convidado no meio da semana pra ir em uma boate, segundo ele, muito 10. A garoa começa a cair e vocês param debaixo de uma marquise para terminar de fumar os cigarros que estão ficando encharcados. Esperam um pouco, a chuva cessa e seguem caminhada. Se aproximam da boate, a fachada parece uma construção inacabada com a luz de néon formando as palavras BAR LUPICÍNICA. Na entrada um negro enorme te entrega a comanda depois de te dar boa noite com cara de amigo de infância.
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O lugar não é muito grande , poucas mesas e em cada uma delas um pequenino abajur. No teto três luminárias em formato de concha que jogam a luz no teto, formando uma luz indireta e agradável para os olhos de quem bebeu até de manhã na noitada anterior.
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A cerveja vem em um balde com seis garrafinhas afogadas no gelo, estão estupidamente geladas e o vinho é servido em taças de vidro alemão, um vidro que parece cristal de tão fino. A música é o que tem de melhor. De repente você agarra o cardápio com ar de suspense, pensando no limite do cartão de crédito. Ao fitá-lo verifica que o preço cabe em seu orçamento. Que alívio!
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As palavras vão sendo molhadas lentamente, o assunto flui sabendo que não tem hora pra chegar em casa. Penetrando a madrugada, a música se espalha no ambiente através da voz direta e agradável do senhor de barba longa. O duo de piano e violão que o acompanha é de primeira estirpe, músicos sofisticados, dá pra ver na expressão de cada face e no tanger de cada acorde. Calmamente os lábios envoltos por pelos brancos ao microfone cantam...”acendo um cigarro, molhado de chuva até os ossos...”
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No decorrer das canções o cantor vai chamando seus parceiros para darem uma palhinha. É tudo muito emocionante naquele ambiente escuro e enfumaçado, belíssimas canções. As 4 da manhã ele diz – essa fiz em parceria com esse aqui ao meu lado, debruçado em seu piano. Seguem no compasso: – “Batidas na porta da frente: é o tempo, eu bebo um pouquinho pra ter, argumento, mas fico sem jeito calado, ele ri, ele zomba do quanto eu chorei, por que sabe passar e eu não sei, num dia azul de verão, sinto o vento, há folhas no meu coração, é o tempo, recordo o amor que perdi, ele ri, diz que somos iguais, se eu notei, pois não sabe ficar, e eu também não sei, e gira em volta de mim, sussurra que apaga os caminhos, que amores terminam no escuro, sozinhos, respondo que ele aprisiona, eu liberto, que ele adormece as paixões, eu desperto, e o tempo se rói com inveja de mim, me vigia querendo aprender, como eu morro de amor, pra tentar reviver, no fundo é uma eterna criança, que não soube amadurecer, eu posso e ele não vai poder, me esquecer...”
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Todos aplaudem de pé ao final da última canção, quando alguém cutuca seu ombro bruscamente, você abre os olhos e vê a mulher com quem dormiu. Qual o nome dela mesmo? Levanta preguiçosamente do sofá do quarto dos discos e livros, olha em cima da mesa o sanduíche com apenas uma mordida, o embrulho da encomenda rasgado e a capa do cd “Vida Noturna” do Aldir que acabou de tocar no aparelho.
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Roubado descaradamente do blog do Diogo Fonseca que, assim como eu, teve esta sensação ao ouvir pela primeira vez o CD do Aldir.

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